As apurações sobre o incêndio na estátua da ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, em Salvador, devem ser concluídas em janeiro de 2023. O prazo cumpre o período de 30 dias para que o laudo do Departamento de Polícia Técnica (DPT) seja finalizado.
O caso aconteceu na madrugada do dia 4 de dezembro, quando um incêndio foi registrado no monumento localizado na região que liga a Avenida Paralela ao bairro de Stella Maris. Mãe Stella de Oxóssi faleceu em 2018, aos 93 anos, e ficou à frente do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, no bairro do São Gonçalo do Retiro, em Salvador, por mais de quatro décadas.
Segundo a prefeitura de Salvador, o caso foi registrado na 12ª Delegacia, em Itapuã, e o laudo da DPT irá identificar se o incêndio foi acidental ou criminoso. A Fundação Gregório de Matos (FGM), responsável pela preservação e formulação da política cultural da cidade, informou que a Polícia Civil tipificou o caso como “ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo” e que busca testemunhas para auxiliar na investigação.
Maíra Vida, advogada e coordenadora do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo da Bahia, acredita que o incêndio se trata de um ato “criminoso” e aponta uma carência de vigilância no monitoramento e proteção de monumentos históricos da cidade, o que acaba dificultando a investigação.
“No momento, em contato com a 12ª Delegacia Territorial, que é onde tramita a ocorrência e onde também se realizou a perícia técnica, nós temos a informação de que consultando as câmeras da localidade da Avenida Paralela, não conseguimos identificar elementos que pudessem contribuir para a materialidade no sentido de prova da ação, que nós acreditamos ser criminosa, e nem da autoria”, afirma a advogada.
Como forma de auxiliar na apuração do caso, a Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-BA emitiu uma nota conjunta com uma série de recomendações à sociedade civil e ao poder público para evitar que casos de racismo religioso fiquem impunes. “Nessa nota conjunta, não se trata apenas de repúdio. Nós temos um conjunto de orientações dirigidas à sociedade civil e uma atualização das nossas primeiras ações na primeira semana de dezembro. A gente indica quais foram as ações de articulações políticas e atuação de colaboração técnica, portanto, interinstitucional, que nós adotamos”, aponta Maíra Vida, presidente da Comissão.
Conforme a FGM, a Fundação já está em tratativa com os filhos de Tatti Moreno, artista responsável pela obra que faleceu em julho deste ano, para recuperação da estátua. No entanto, ainda não há previsão para o início do projeto nem instalação do monumento. “Eles [os filhos de Tatti Moreno] têm o molde original da obra, portanto estamos aguardando uma proposta para fazer a réplica do monumento. Ou seja, Mãe Stella vai retornar ao lugar de onde nunca deveria ter saído e mais uma vez vamos poder homenagear essa grande ialorixá”, informou o presidente da FGM em nota.
Ainda de acordo com a Fundação, a estátua, confeccionada em fibra de vidro, deve ser restaurada com um material anti chamas, para evitar que novos casos aconteçam.
Racismo religioso
A escultura, que homenageia uma das líderes religiosas mais influentes do país, foi inaugurada em abril de 2019 e cerca de cinco meses depois foi alvo de vandalismo. Até hoje ninguém foi responsabilizado pelo crime.
Nos últimos anos, atos de vandalismo contra monumentos ligados a representantes das religiões de matriz africana têm sido frequentes na capital baiana. Em 2020, o busto que homenageia a ialorixá Mãe Gilda, símbolo do combate ao racismo religioso no Brasil, foi apedrejado. Em 2016, o monumento também foi alvo de vandalismo e precisou ser reformado.
De acordo com a Polícia Civil da Bahia, o suspeito do apedrejamento vivia em situação de rua e tinha sinais de uma pessoa com saúde mental debilitada. Questionada se o suspeito foi preso, a Civil informou que a Central de Flagrantes lavrou um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) sobre dano ao patrimônio público e que ele “não deixou claro o motivo do ato”.
No ano passado, o busto de Mãe Runhó, ialorixá que foi responsável pelo Terreiro do Bogum por 50 anos, precisou ser restaurado após ser alvo de uma série de ataques que danificaram o monumento, localizado no final de linha do Engenho Velho da Federação, bairro periférico da capital baiana. O busto é tombado como patrimônio histórico da cidade.
Integrante do Coletivo de Entidades Negras, Cassi Coutinho atribui os ataques ao racismo estrutural, que vê negativamente as manifestações de matriz africana na sociedade.
“A gente vê que existe ainda hoje, graças a esse racismo estrutural, uma demonização das religiões de matriz africana e isso se reflete muito na forma como as pessoas, a sociedade em geral, lidam com esse monumentos que representam, dentro das religiões de matriz africana, um símbolo, uma personalidade importante”, pontua Cassi, doutora e mestre em História e especialista em Arte-educação.
A FGM informou que está elaborando novas formas de evitar novas situações de vandalismo, “contando com o apoio das autoridades de segurança e, também, com a conscientização da população sobre a importância da preservação do patrimônio público”, finaliza a nota.
Para Cassi, para além de segurança e monitoramento, é preciso que a atuação em combate ao racismo religioso esteja interligada às ações de cultura e educação, a exemplo da Lei 10.639, que obriga o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas instituições de ensino.
“Isso é importante para que a gente desconstrua essa visão eurocêntrica de que a cultura afro-brasileira é algo relacionada ao demônio, porque a gente vê não só nessas imagens religiosas essa associação ao que é ruim, mas também a gente vê em outras culturas como a capoeira, a dança, o batuque. Essas são culturas que terminam sendo associadas por causa dessa construção histórica que define a cultura afro-brasileira como algo menor, algo ruim”, completa.
Fonte: Alma Preta Jornalismo